Rasgos e manchas: a situação do acervo de Carolina Maria de Jesus

Filha da escritora e pesquisadoras relatam descaso da prefeitura de Sacramento (MG) com o acervo de Carolina Maria de Jesus; a situação se arrasta há mais de duas décadas

Por Beatriz de Oliveira

13|04|2023

Alterado em 17|04|2023

Carolina Maria de Jesus é uma das escritoras mais importantes do Brasil, teve seus livros publicados em mais de 40 países, recentemente o governo federal lançou um prêmio de literatura que leva o seu nome. Bitita, seu apelido, escrevia poemas e relatos em papéis que catava no lixo. No entanto, grande parte de seus escritos originais estão comprometidos devido ao mau estado de conservação; em alguns cadernos já não é possível ler trechos por estarem com manchas, fungos e rasgos.

A maior parte do acervo da escritora está em Sacramento (MG), cidade em que Carolina nasceu. É lá que os documentos estão guardados de maneira inadequada. Raffaella Fernandez, integrante do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e pesquisadora da obra de Carolina, foi até o local enquanto produzia sua tese de doutorado que resultou no livro “A poética de resíduos de Carolina de Jesus”. Ela relata que as condições são precárias e a sala não é refrigerada. “Embora eles tenham organizado melhor o material após a presença massiva de pesquisadores e militantes, não há esforço para dignificar essa memória”, afirma.

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Manuscritos de Carolina Maria de Jesus apresentam manchas, rasgos e fungos © reprodução/livro "A poética de resíduos de Carolina de Jesus"

Acervo está localizado em Sacramento (MG) © reprodução/livro "A poética de resíduos de Carolina de Jesus"

Escritos originais de Carolina estão comprometidos devido ao mal estado de conservação © reprodução/livro "A poética de resíduos de Carolina de Jesus"

Há ainda outro fator que incomoda pesquisadores e familiares da escritora. No local em que o acervo está localizado, funcionava um presídio, onde Carolina foi presa e espancada ao menos duas vezes: acusada, junto com a mãe, de roubar dinheiro de um padre e acusada de feitiçaria por estar lendo um dicionário, que os policiais julgaram ser livro de São Cipriano, um feiticeiro que se converteu ao cristianismo. Carolina foi presa no mesmo lugar em que hoje sua memória está detida.

O acervo da escritora está presente também em ao menos outras duas instituições, Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e Instituto Moreira Salles (IMS), onde as obras estão preservadas da maneira correta. Vera Eunice, professora e filha de Carolina, conta que já tentou inúmeras vezes, sem sucesso, retirar o acervo de Sacramento. Seu sonho é que a memória da mãe seja preservada e que as pessoas possam conhecer as várias faces de Carolina.

“Eu quero que o acervo fique em um lugar acessível, porque eu quero que você veja, que a criança veja, que pessoas de outros países venham ver Carolina Maria de Jesus”, afirma.

Descaso com acervo de Carolina dura mais de 20 anos

Numa viagem à Sacramento, há 24 anos, Vera Eunice se sentiu bem tratada na cidade e decidiu que era ali que as obras originais de Carolina deveriam ficar. Então, doou o acervo à prefeitura, que se comprometeu a tomar todos os cuidados para manter o material preservado e deixá-lo em local adequado. Quatro anos depois, visitou novamente a terra natal da mãe e encontrou os escritos nas mesmas caixas que havia deixado. Conversou novamente com membros da prefeitura, que prometeram tomar atitudes.

“Colocaram dentro da cadeia onde minha mãe foi espancada”, afirma Vera sobre o que aconteceu após a conversa com o poder público de Sacramento. Depois disso, os materiais foram colocados em pastas. Numa outra visita ao local, percebeu que itens que doou haviam sumido. “Faltavam fotos da minha mãe, fotos minhas pequenininha, uma foto que minha mãe está com vestido de carnaval”, conta.

Segundo site da prefeitura de Sacramento, o acervo está localizado no Arquivo Público Municipal – Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Bruonswik, local em que funcionava a antiga cadeia. Informam que o acesso aos documentos é público, bastando agendar uma visita por e-mail ou telefone. Há também um guia sobre o acervo, no qual se informa que os documentos ficam guardados em estantes de MDF numa das quatro salas do ambiente. Também afirmam que o local não é climatizado.

Ao todo são 37 cadernos doados por Vera Eunice em janeiro de 1999, com narrativas variadas: diários, romances, contos, provérbios, poemas, textos curtos e narrativas autobiográficas. “Em uma avaliação geral, os documentos se encontram em bom estado de conservação”, diz um trecho do guia, que cita como referência o livro de 2015 “Vida por escrito: guia do Acervo de Carolina Maria de Jesus” do pesquisador Sérgio Barcellos.

No entanto, em sua obra o autor afirmou o contrário: “os documentos autógrafos encontram-se, em geral, em estado ruim. Há cadernos danificados, com páginas mutiladas, manchadas e sem capa”.

Vera Eunice recebe relatos de pesquisadoras que vão até o local e encontram pessoas comendo na sala do acervo, sem orientações sobre cuidados com o manuseio das obras.

Outro ponto que preocupa a professora em relação à memória da mãe são as obras que estão sob posse de pessoas físicas. Ela diz que Carolina costumava emprestar seus textos para conhecidos e amigos. Ocorre que muitos não devolveram, mesmo sendo procurados por Vera Eunice.

Após a morte da mãe recebeu uma carta escrita por ela, em que pedia para colocar livros ao invés de flores no túmulo, para nunca vender seu sítio de Parelheiros e para propagar a memória dela. “E num papelzinho separado estava escrito: ‘vai atrás dos manuscritos que emprestei para as pessoas”, lembra.

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Vera Eunice junto a estátua de Carolina Maria de Jesus

©Beatriz de Oliveira

País racista: situação do acervo aconteceria com uma escritora branca?

Em julho de 2020, a Companhia das Letras anunciou a criação de um conselho editorial para supervisionar a publicação de obras de Carolina Maria de Jesus, incluindo escritos memorialísticos, romances, poesia, música e teatro. O conselho é formado por Vera Eunice, Conceição Evaristo e pelas pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandez.

A primeira publicação trabalhada pela equipe foi Casa de Alvenaria. Apesar de já ter sido publicado anteriormente, o material continha mudanças nos textos originais da escritora. A intenção das pesquisadoras era se manter fiel aos manuscritos, então procuraram a prefeitura de Sacramento, que lhes enviou os cadernos digitalizados.

Amanda Crispim, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, do Centro de Letras e Ciências Humanas (CCH) da UEL e integrante do conselho, conta que vários trechos dos cadernos originais estavam ilegíveis pelo estado de conservação e que não encontraram um dos cadernos que compunham a obra. Para a pesquisadora, a falta de cuidado com o acervo de Carolina prejudica a perpetuação de sua memória; restringindo o seu acesso a apenas um pequeno número de pessoas que pesquisam sobre a escritora.

“Quando eu chego num lugar e falo que a Carolina tem no mínimo 57 cadernos, e neles tem no mínimo oito romances, mais de 200 poemas, três peças teatrais, contos, textos humorísticos, canções, as pessoas me dizem: ‘Meu Deus, então eu não conheço nada de Carolina’. Então, conservar esse acervo e liberá-lo para o público é fundamental para que a gente conheça a Carolina e a literatura brasileira de fato”, diz.

A pesquisadora aponta ainda que o descaso com os manuscritos da escritora ilustram um país racista, que não valoriza memórias negras. “Eu sempre me recordo de uma fala da Vera Eunice em que ela diz que queria que os livros de sua mãe estivessem guardados e seguros da mesma forma que os da Clarice Lispector estão”, lembra.

As falas de Amanda ecoam a revolta de ser necessário lutar pela memória da maior escritora do país. “A Carolina é a maior escritora desse país porque trouxe transformações importantíssimas dentro do que a gente entende por crítica literária, historiografia literária e poética brasileira”.

Outro lado

Questionado sobre a situação do acervo de Carolina Maria de Jesus, o secretário de Cultura de Sacramento, Luiz Carlos Testa Souza, afirmou, por meio de aplicativo de mensagens, que “tudo que foi pedido para fazer no acervo para conservação está sendo feito e há obras sendo restauradas”.